CRÔNICA: As ranzisses e a delícia de estar perto de vovó

Idosos precisam de amor, cuidado, atenção, empatia e respeito

Compramos o andador para ela se sentir mais segura

Talvez esta palavra não exista ainda no dicionário da nossa amada Língua complicada portuguesa: ranzisse. Encontrei somente numa crônica de Roberto F. Stort no Recanto das Letras.

Vovó adora consertar coisa velhas

Vovó Nalzira completou, há poucos meses, 91 anos. Ainda estava residindo na casa do filho, no andar debaixo quando decidimos cantar parabéns.

Fizemos a festa só para não passar em branco

Mas vovó ficava muito ranzinza naquela casa, reclamava de tudo da cozinha ao quarto. Ela queria mesmo voltar a morar na casa dela.

Achava a casa pequena queria voltar a dela

E tá certa. A casa é dela. Tem tudo que revira suas memórias: a saudade do amado, aos muitos cômodos interligados e sem portas. Os três fogões, os quatro bujões, as cinco panelas de pressão, os oitos coadores de café, os quatro facões. Coisa de vovó.

Para que voltasse à sua velha casa precisávamos dar uns retoques. Pincel e tinta, pedreiro, carpinteiro, matador de cupim, faxineira. Viramos nós, um pouco de quase tudo.

Retiramos 35 sacos de entulho do quintal

A casa de vovó depois de cinco anos voltou a ficar dela novamente. Retiramos do quintal não menos que 35 sacos de 100 kg de entulho. Deixamos o pilão, o pé de cana, o tronco do coqueiro e do pé de urucum, cuidamos do de arnica, afinal, tantas dores, tantas juntas, ai ai…

Era preciso dar vida ao ambiente

Lembrei que sabia fazer canteiros e que foi a horta na minha infância que me deu os primeiros materiais escolares. Semeamos e lá plantamos: jiló, milho, feijão, almeirão, coentro, cebolinha, chuchu, inhame, pimenta de cheiro, pimentão, couve, e muitas flores. De 11horas a rosas, jiboias e beijo.

Os pés de jilós estão todos carregados
Tudo que plantamos já está sendo colhido

Tudo está lindo, florido a gente já se alimenta da horta de vovó. Mas ela, ranzinza que nem ela, nem as plantas molha. Diz baixinho: “não fui eu quem plantei.”

Hoje disse que o milho da papa está crescendo, vamos fazer juntas

A neta faz de um tudo: compras, limpeza, comida, lava as roupas, dobra e guarda. Enxuga os pés, dedo a dedo, passa Minâncora, tira bicho de pé, dá os remédios na hora certa, dorme nos pés da cama para que, ao se levantar, possa conduzi-la a qualquer hora ao banheiro. Almoço e café na hora certa. Todos os remédios, consulta em dia, glicose e pressão medida com frequência.

Preparamos sempre o que ela mais gosta de comer e merece

Vovó não sabe dizer obrigada por nada. Talvez nem tenha culpa, está confusa, pensa que é de manhã à noitinha. Reclama de tudo, até das crianças: “O pé ta sujo em cima dos panos”. “Cadê o óleo da máquina?”. “O machinho pegou o martelo”. “Chimbica ta com fome”. Não sabe ela que virou criança de novo, que a sua coordenação motora já está indo embora e o raciocínio não anda como antes. Não sabe onde coloca as agulhas, nem as chaves que esconde dela mesmo. Outro dia a carteira desapareceu e ela ficou pensativa dias, até que achamos atrás de um dos quatro fogões da segunda cozinha dela. É que a casa tem três cozinhas, três tanques, ter quartos, um paiol, duas varandas, e quatro pias de cozinha…  

Toda semana tem uma delícia que ela gosta de comer

A cada rosquinha que preparo, a cada pão, a cada folha que tiro da horta, ou a cada reclamação, sou grata por tantos anos que ela vive. Em meio a tanta ranzinzinsse, deixam-me com saudade a doçura que ela tinha, agora fazendo das tripas coração sem desejar nada em troca, apenas que ela tenha muita qualidade de vida, ouço de vez em quando murmúrios e finjo que não escuto nada. Entra num ouvido e sai no outro.

Na casa dela ela voltou até a costurar, depois que a levamos ao oftalmologista e o óculos ficou pronto

O idoso precisa mesmo é de amor, compreensão e cuidados. Caem atoa, pois não têm mais direção. Engasgam e fazem xixi na roupa, soltam flatos a todo instante, mas são eles que viram os lobisomens, o Saci Pererê e nos enchem de alegria com as lendas que se tornaram suas verdades e lembranças de outrora.

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