CRÔNICA: É, não é sonho

Eu tive vontade sugerir aquele fazendeiro que matasse uns três bois de suas propriedades e convidasse o povo para um banquete, e junto todos fizessem uma prece com o padre da comunidade. Ou quem sabe, pegasse parte de tantas terras e dividisse para com quem nada tem, assim o fado seria menor e ele pudesse descansar mais e viver muito melhor…

Estou acordada desde às 3h00 da madrugada. Resolvi tomar um banho para me sentir mais leve. Já não quero mais pegar no sono, estou refletindo o sentido da vida, a razão pelas quais estamos aqui.
Elevo meus pensamentos ao Criador de todas as coisas e peço que não me deixe perder no Teu propósito que é fazer apenas o bem sem olhar a quem, em qualquer lugar, onde estiver.
Que é socorrer o aflito e levar o que precisa para aliviar o seu lamento. Aliviar o seu sofrimento.
Que não me permita esquecer as demandas enviadas, e que não me deixe perder em meio ao nada e nem na ganância de buscar, apenas para mim, o que acho que preciso.
Tive a oportunidade de percorrer grandes propriedades de terra e me perder na contagem do número de bois do fazendeiro que teme perder sua riqueza para a seca.
Do rico fazendeiro que não aceita dividir nem um palmo de suas terras com quem nada possui, nem mesmo um pedaço de carne do boi daqueles que vão cair de tão fracos e morrer no pasto seco.
Rumino como os pobres fracos animais perdidos no meio da imensa propriedade seca, o desespero daquele homem que, como eu perde o sono.
Ele vai para o fogão ferver a água na chaleira, fazer o café e sair correndo para tentar tirar o pouco leite que sobrou nas tetas secas de suas vacas magras. Eu quero escrever um poema, uma crônica, e, nestas linhas, dizer quanto perdemos tempo em busca de tanta coisa e ao mesmo tempo, nada.
A morte é certa. A rainha do Palácio, os bois no pasto, o idoso acamado e abandonado no asilo, a criança que engole a lagarta, a menina que a mãe atirou alcool e ateou fogo, a mulher vítima de feminicídio, o dependente da droga nas mãos do traficante maldito, o bêbado ao volante que provoca o acidente e mata o inocente; o que sofre de câncer, a jovem que infarta, a depressão que leva o tiro na própria cabeça ou a corda no pescoço, o que se droga escondido para sufocar sua dor…A morte ronda a todos, e, nos caixões, um corpo frio, de mãos imóveis cruzadas e bolsos vazios.
Não paro de pensar no pequeno produtor que aceita dividir com o outro o pouco da sua cana que mal alimenta o seu gado três dias e o outro dono de tantos alqueires e mais de mil cabeças quer tudo pra ele. Que imensidão de terra e matas a perder de vista, moço…

O padre convocou os fiéis para a novena, a fé remove montanhas, mas as capelas ficaram vazias, contou com poucos que nem sabem pedir chuva aos céus, estão exaustos da lida, são 12 horas por dia em busca de cana, cilo, soro e ração. Correm pra lá e pra cá, e todo dia morrem mais e mais de seus animais. A terra seca já não nasce mais nada, nem capim, nem fruta, nem a cana cortada brota.
A Usina deve fechar as portas e os trabalhadores serão desligados, vai acabar o leite, a carne, o açúcar, as frutas, as verduras, e a ganância permanece nua e crua, o egoísmo de querer sempre mais para si e para os seus está estampado no rosto de uns, e em outros o fado já não lhe dá mais força.
Os pássaros já estão cantando e o galo em um terreiro distante, ouço passos lentos no quarto, a vovó vai ao banheiro, estou acesa para acompanhá-la.
Hoje é um novo dia, eu sou grata pela seca pois ela me faz ver o quanto o campo nos serve, e também entender que nem todo dia a gente consegue fazer uma prece a Deus pela chuva, pela terra, pelos animais. Estamos correndo atrás de realizar os nossos sonhos egoístas.
O dia amanhace, eu quero só uma prece…

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