“Ah Tia Fiota!!!”, de Luciana Maximo

Ah, Tia Fiota…

Era muito bom ir à casa da Tia Fiota. A gente não tinha ideia das dificuldades da época, éramos só crianças.

Lá eram muitas crianças. Tinha Bolão, Cuca, Dequinha, Miro, a Veia, Baiano, Neneca, Hugo, Zói de Jipe e Branco. Além das crianças da Tia Ofélia: Adriana, Cláudia, Delso, Marinho, Zé Augusto… Lá de casa, era eu, Xuxula, Marquinho e Branca.

Naquele imenso terreiro com o campo de bola de pau, a casa antiga de varanda de ripas, assoalho, escada de madeira e janelas trancadas com tramelas, o pomar atrás daquela casa enorme, repleto de laranjas. O cheiro da terra mexida, da fumaça do fogão e das cascas de mexerica ainda está vivo na minha memória.

Pobreza e fartura.
Da colheita da mandioca que Tia Fiota, Tia Ofélia e mãe viravam a noite e madrugada adentro fazendo farinha, tapiocas e bejus para dividir entre as três famílias. As vejo agachadas ralando mandioca e despejando na gamela para virar polvilho. Ouço o barulho das pás de madeira remexendo o tacho naquele forno quente à lenha. Não me lembro de ouvir nenhuma reclamação delas. Todas as três, Palmerina, Ofélia e Fiota, mães de tantos filhos nascidos em casa com parteiras.

Eta vida dura. Apanharam café, plantaram mandioca, feijão, milho, arroz. Nas várzeas pegaram taboa, amarraram a cambitos para fazer esteira e vender, fizeram vassouras, carregaram na cabeça fechos de lenha catados na mata, latas d’água da cacimba onde lavaram roupas. O pilão, o pé de urucum, a paçoca que faziam, o fubá… Era muito legal ir para lá brincar de pique-bandeira, garrafão e queimada no terreiro.

Tia Ofélia me contou que outro dia a prosa com a Tia Fiota acabou em risadas com as recordações da cena do lobisomem, no dia que foram à igreja, lá na Alegria. Na volta, o bicho correu atrás dela, que estava grávida de Olga. Que medo…

Qualquer dia eu vou contar sobre o mato capão, lá de perto da Igreja das Neves, onde elas namoravam.

Hoje foi duro acompanhar a cerimônia fúnebre. A cena não sai da cabeça: vê-la recebendo carinho, seu corpo já frio, e as bisnetinhas que achavam que a senhora somente dormia, acariciando o rosto coberto por um véu branco. Suas mãos tão calejadas cruzadas. Tanto fez, tanto se doou, tanto labutou, parecia mesmo estar aliviada de tanta dor, do sofrimento daquela maldita doença.

Passou um filme todo na minha cabeça. Lá estavam 12 dos 13 filhos; Macho, assim chamado entre eles, Valdeir, está internado. Os outros eram acalentados pelos amigos, filhos e muitos primos. Primo pra cá e pra lá.

_ Primo, quanto tempo! Meu Deus, essa é qual prima?
Todos se chamam assim, Primo. Ninguém fala o nome de ninguém, é tudo primo e prima.

A cidade parou para se despedir da Tia Fiota. Todo mundo sabia que a Festa na Roça precisava acontecer de novo, mas lá no canto, ficou vazio; Tia Fiota já não está mais lá.

A Capela da pacata cidade estava lotada, o culto foi comovente. Revi todos da época da minha infância. Foi uma reviravolta de memórias. Tia Fiota, mulher honesta, trabalhadeira, protetora. Quando tio Franço bebia um gole a mais e batia nos meninos à toa, ela entrava no paiol e o arrancava pelo braço como uma leoa.

Ah, Tia Fiota, que bom saber que Marilza dedicou seus últimos anos inteiramente a cuidar da senhora. Largou marido, casa, filhos e netos. Que Neneca estava sempre lá; quando a senhora estava na Roça, ela cozinhava para todos. Que Joana, por perto o tempo todo, a levava para passear no Mosão. Que seus filhos todos choravam nesta última tarde juntos, cada qual com a sua dor, sua lembrança e gratidão.

Que saudade hoje daqueles tempos de outrora. Do pé de maracujá perto do grupo, perto do mata-burro onde a gente estudava, do banho de brejo, das caças às preás…

Tia Fiota, Eumazima Batista Sedano, 89 anos, se foi neste domingo, às 4h00, deixando o Canto silencioso. Não tem mais nenhuma graça, não tem a varanda, janelas de pau, tramelas. Não há mais nenhum pé de laranja-baía, paiol, fogão a lenha. Acho que o campo virou pasto ou secou e, até a moita de bambu acabou. Não tem mais roça de mandioca, nem café para apanhar. Não tem caça para fazer pro almoço. As meninas foram embora. Os meninos se casaram todos. A casa enorme está vazia, a senhora se foi, dorme. Madrugada de domingo, 02, o canto acabou. Dorme, tia, descansa em paz. Seus 13 filhos cresceram, vão ficar bem.

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