Allan – despedida triste, emocionante e aplaudida
O texto não é uma notícia, que já foi transmitida, ao vivo, na live que fizemos no cortejo. É um registro de memórias de uma repórter que se emocionou com a força do pai.
Era por volta das 01h00, havia acabado de tomar um banho e beber mais uma garrafa de água, depois de um dia de muito calor. Sentada na cadeira, junto à mesa da cozinha, ainda envolvida na toalha. Não queria esquecer uma palavra que ouvi naquela despedida fúnebre. Respirava forte, ofegante e, se pudesse mostraria minha face, que parecia tremer de cansaço. Cansada de um dia extenso de muitos acontecimentos e narrativas, mas o quê significava o cansaço de um dia de trabalho, para uma família que havia acabado de deixar o corpo do menino tão amado, sepultado, numa noite de verão?
Foi incomparável a tudo. As cenas se confundiam na minha cabeça. Eu gosto tanto de fazer lives e compartilhar com todos, emoções e detalhes de uma notícia ao vivo. Anteontem eu não consegui. Fiz um vídeo mal feito, montado num sol escaldante para retratar a cruel execução de um menino que estava há dois anos e duas décadas, somente, aqui neste plano.
Tão logo vi o pai e os irmãos, sentados em pneus, pertinho do corpo no chão, cravado de balas de uma maldita pistola .45, todo ensanguentado. Encostei-me no outro lado, ainda na moto, avistei um sargento da PM e perguntei o que tinha acontecido de fato. Um silêncio me mandava atravessar a fita amarela e abraçar Alex. Havia me comprometido a registrar o crime, sem me aproximar do corpo e sem fazer a foto para ilustrar a notícia, muitos me pediam detalhes em mensagens de WhatsApp, direct de instagram e na mensager da página do facebook. Eu pedi licença para escrever a notícia da execução daquele menino tão menino.
Nunca tinha visto um pai se debruçar no corpo do filho, na beira do asfalto quente… Nunca tinha visto um pai andando de um lado para o outro buscando alguma explicação que o levasse ao óbvio, para aquela cruel cena praticada na manhã de segunda-feira, em plena luz do dia.
Os meninos menores ao lado do pai, sem uma palavra, engasgados, mutilados em seus sentimentos. As fotos e vídeos já estavam circulando nos grupos. Eu não respondi a ninguém, enquanto não anotei os detalhes repassados pela polícia, que tinham no momento. Sem pressa. Depois que a gente tem filhos, a gente entende o que um pai sente num momento deste.
A chegada da mãe, da tia, dos amigos, da ex-namorada, da ex-mulher, da ex-sogra e de tantos curiosos que passavam e olhavam a fita amarela isolando o local, as viaturas da Polícia Militar, o trânsito devagar correndo no sistema pare e siga, era a mesma reação. O que fizeram com você Allan?!!
Ontem, anteontem eu vi a força do amor, o amor que o seu pai, sua mãe, seus amigos, seus irmãos, seus parentes têm por ti, menino. Tão garoto ainda tirado dele o sopro da vida. Quando eu cheguei à igreja, atendendo o pai que queria convidar a todos para a despedida, eu o procurei no andar de baixo, no andar de cima do templo e não o achei. Ele estava de joelhos orando e pedindo a Deus força para receber o caixão do filho que estava para chegar poucos minutos depois.
Eu nunca vi. Eu nunca vi. E creio que Deus o revestiu para suportar aqueles momentos, depois de tantos outros obstáculos tão difíceis. Seguir a Cachoeiro de moto, ir ao Serviço Médico Legal, no bairro Independência, atravessar a cidade toda, seguir a delegacia no BNH e retornar ao SML onde o corpo era colocado numa geladeira, para somente dia seguinte fazer a liberação, após os trâmites que dependia dos peritos que estavam na rua em outras cenas de crimes tão violento quando aquele do seu filho.
Eu tenho certeza de que o pai, Alex Ramos, o bravo ativista que briga por todos que nem conhece, às vezes, buscou em Deus uma força do além para conduzir tudo, todos os detalhes em todos instantes.
Desde o primeiro momento, a chamada no telefone do filho mais novo que ligava e dizia que o irmão tinha levado muitos tiros e saía muito sangue. E pelo telefone orientava que o menino mais novo pusesse a camisa sobre os orifícios causados pelo grosso calibre para tentar salvar e estancar o sangue. O menino morreu com o irmão, sem saber direito o que fazer, era impossível impedir que ele se fosse. Foram lá para executar e fugiram tão logo descarregaram a pistola inteirra.
Tudo sobre os seus olhos, naquela margem de asfalto denso e quente, há poucos metros do radar da Aparecidinha. O irmão ouviu o barulho dos tiros em casa, na casa da própria mãe, e foi tentar socorrer. Que dor!
Numa live, por volta das 14h30, o pai convocou os amigos e clientes do filho morto que fizessem a despedida juntos, num cortejo fúnebre fazendo uma carreata à noite, e lá foram eles, iluminando a rodovia “Jorge Feres”, com os faróis ligados e buzinando, uma fila interminável de carros seguia em direção ao cemitério. Que despedida, que força, Alex, que exemplo de pai!
Uma última parada na cena onde Allan teve a vida tirada, num gatilho cheio de ódio, que parece ter descarregado toda munição naquele jovem corpo. O carro da funerária, os veículos e as motos pararam no local e manobraram e seguiram o cortejo.
Seguimos juntos ao cemitério iluminado, por um grande refletor, preparado para o sepultamento nesta noite de terça, 17. Os meninos silenciosos, a mãe dopada, e o pai agradecendo a todos, o tempo todo, enaltecendo o bom filho, o presente que Deus o deu por 22 anos. Os amigos inconformados, alguns sentados no meio fio perguntando: “Por que Deus, por que o Allan?”
Eu nunca vi, um pai dilacerado de dor, orar e entregar o corpo do filho a Deus. “Senhor Deus, obrigado pelo Allan nas nossas vidas, pelos 22 anos que amamos todos os dias, o Senhor me deu, o senhor recolhe, bendito seja o Nome do Senhor, receba em teus braços meu filho”. Lá nós nos despedimos sob aplausos do corpo do barbeiro, que tinha toda paciência do mundo para fazer o corte preferido pelos seus clientes.
Só me resta agora pedir que o Senhor Jesus receba Allan nos braços e dê a ele o descanso eterno, que esteja com toda a família levando o bálsamo. Que a mãe esteja amparada pela Tua Misericórdia. Nós vamos encerrar por aqui, pedindo paz, pedindo tolerância, pedindo diálogo e pedindo perdão. Eu peço a Deus, dioturnamente, que olhe por nós, que nos proteja com Teu Manto Sagrado, das armas, do descaso, da falta de respeito, da intolerância, do racismo, da homofobia, da ambição, da vaidade, da violência desnuda, das almas vazias de amor e tomadas pelo ódio, pela mágoa e pela vingança. Acalente Jesus, todas as mães que perderam seus filhos, todos os pais e todas as famílias em luto por este mundo afora manchado de sangue.