Lavou rouba na bacia e carregou lata d’ água na cabeça
Dona Nalzira, 85 anos, relembrou o tempo em que nem televisão havia, o tempo que os filhos não respondiam aos pais, o tempo que o café era de cana
A cria de Piúma escolhida para esta edição é dona Nalzira Siqueira dos Santos, 89 anos. Ela reside no bairro Niterói em Piúma. As lembranças mais vivas da cidade ela traz com saudades. Conta histórias que só quem nasceu em Piúma é capaz de se relembrar. Na verdade como ela mesma diz, ela mora Dotro Laddo, se referindo ao bairro Niterói.
A brincadeira das Crias está rendendo no facebook, e só quem é da cidade onde a lembrança é postada é quem comenta os postes, pois trazem à tona um tempo vivido com saudosismo.
Para continuar na brincadeira vovó Nalzira contou um pouco das suas lembranças com Piúma, em especial com a localidade que viveu um bom tempo de sua vida.
Falou da dureza do seu tempo. Contou sobre a cidade de Piúma, e lembrou de cenas que a fizeram sorrir, mesmo passando mal. É que vovó Nalzira vez em quando sofre com problemas no fígado, que ela chama de ‘figueredo, ou figo’.
Com uma linguagem simples e sem se preocupar com concordâncias, tudo que vovó fala a gente entende e bem. E na prosa com ela, foi possível perceber que as mães de hoje, as jovens mães estão cheias de regalias, e certamente, não suportariam passar pelo que ela passou para educar os três filhos: Vidal, Genilha e Juju.
Há 50 anos, tanque era um artigo de luxo e poucas pessoas tinham. Vovó relembra que ela e outras mulheres usavam uma bacia e lavavam roupas próximas em uma represa. Naquele tempo não tinha tanque, nem água encanada, nem luz – energia. “Nós ‘colocava’ quatro ‘furquias’ no chão e ‘ botava’ o ‘beiço’ da bacia para ficar ‘arto’. Lava roupa em pé”. Finada Rosa também ia lavar as roupas junto comigo. Tinha também o “tabuão”, uma espécie de tábua grande que botava no chão e a gente lavava a roupa em cima. Pegava água da bacia jogava em cima da roupa, esfregava e as que estavam encardidas quarava no sol quando estava quente. Estendia no capim para clarear, enquanto a gente tava o perto, porque tinha uma vaca que comia a roupa. Uma vaca amarela da finada “Fiinha”, minha irmã, que era chamada de mancinha”, sorriu.
Nessa brincadeira de crias, quem realmente é cria de Piúma sabe onde era o tabuão, sabe onde era a pedra do descanso, e sabe do pontilhão para atravessar do bairro Niterói, naquele tempo DOTRO LADO a Piúma.
Na prosa com vovó, ela relatou que já trabalhou muito ajudando o marido na criação dos filhos. Pegava água na cacimba e carregava na lata, na cabeça, enchia duas talhas para que ficasse fresquinha. ‘Botava em duas “taias” grande. Era um tempo muito difícil não. Quando eu casei eu morava no pé do morro, no lugar do veio, meu sogro, tinha uma represa na baixada, todo mundo lavava roupa lá. Na época eu já tinha Vidal e ele era muito dorminhoco, dava tempo ‘deu’ lavar a bacia de roupa todinha até ele acordar. Eu pegava a bacia botava na cabeça e vinha. ‘Arriava’ na porta da cozinha e espiava ele, ele tava dormindo. Eu tinha medo de cobra, já tinha matado duas. Enquanto Vidal dormia dava tempo de ‘panhar’ uma ou das latas d’ água, estender a roupa, e eu sempre ‘espiava’ ele, dava tempo de eu ir ‘na’ roça pegar cana para moer e fazer o café. Naquele tempo usava caldo de cana para fazer o café, ficava bom. Era aquela vida. Depois o ‘veio’, meu sogro vendeu o terreno e foi embora pra Guarapari, aí ficou eu sozinha morando no pé do morro, no terreno de Valdemar Souza, e Nedina na chapada e Tereza na banda de lá. Subia o morro e ia ‘na’ casa dela”, relembrou.
Roça
Vovó contou que na época trabalhava na roça e cuidava dos afazeres da casa. “No tempo de finado papai ‘nós fazia açúcar, rapadura, farinha, biju. Cada semana uma coisa. Trabalhei muito na roça no tempo de solteira, depois que eu casei, piorou mais ainda. A rapadura era feita de mamão. Papai pegava mamão em Pongal, ‘relava’ no ‘rodete’, botava no ‘tapiti’ para escorrer a água, depois colocava na ‘gamela’, depois que tava sequinha ‘pocando’ jogava a farinha e ficava mexendo até dá o ponto. Era uma rapadura grandona, quadrada e vendia por ‘um mirreis’. Meu pai pegava e trazia pra Piúma, era tão gostosa, tinha mais mamão do que açúcar. A que ficava em casa não dava pra quem quis. Eu trabalhei muito. Plantei laranjeira, feijão, milho, arroz, café, batata, mandioca, tirava leite de duas vacas. Trabalhei no Bastião – o nome do lugar. Eu já fiz de tudo na minha vida. Tinha de fazer tudo em casa: ‘armoço’, janta. Naquele tempo não tinha pão de padaria, era bolo, fazia broa de fubá. Tinha de tratar de galinha, de porcos, tinha duas vacas, tirava leite, só eu que tirava leite. E depois do ‘armoço’ ia pra roça, ‘de tarde’ chegava tratava ‘das criação”. Galinha de pinto, ovos pra colher, porco pra da comida, tinha janta pra fazer e tinha os três pra dar banho e da janta eles antes de ‘drumir’, quando eu ia jantar era lá para as 10 da noite. ‘Trabaei’ muito, minha filha, agora eu vejo essas mulheres por ai, trabalha um pouquinho dentro de casa e reclama. Hoje elas tem carro, televisão, empregada, telefone, um monte de coisas que no meu tempo não tinha”, comparou.
Ia a festas
Vovó conta com saudades que embora o tempo fosse difícil e os recursos fossem escassos, ela não deixava de se divertir, gostava de ir à festa. “Nós ia a festa de Itaperoroma, São Mateus, Jabaquara e Santa Terezinha”. Rindo e tranquila, vovó contou que teve poucos namorados, mas a irmã; teve muitos. “Ela só não namorava a cobra porque não sabia se era macho ou fêmea. Só preto que ela não namorava. Tinha uma raiva de preto danada. Eu cheguei a namorar moreno. Eu não tinha raiva de preto não. Mas ela tinha uma raiva danada. Mamãe dizia assim: ‘corta o dedo seu, corta o dedo dele, se bota o sangue, o sangue é a mesma coisa’. Como é que se tem raiva de preto e mamãe dizia, Deus ‘aprimita’ que você casa com preto”.
Lobisomem
Vovó contou que na época dela não tinha essas coisas de drogas, mas o pessoal falava que tinha lobisomem. “Tinha lobisomem, a casa que tinha peixe ele só faltava arrancar a porta para ‘entrar pra dentro’ para comer o peixe. Tinha um homem ‘discorado’ lá em Pongal que não tinha uma pinta de sangue, ‘um tá de Ribeiro’, ele morava na beiradinha da estrada para quem ia para São Mateus, dizia que ele virava ‘lobisome’, os dentes era fiapo puro, e a ‘oreia’ era grandona”, relembrou com medo.
De um tempo que a educação não oferecia tantos recursos e numa época em que nem energia elétrica havia em casa, muito menos uma televisão, vovó Nalzira, garantiu que os filhos não respondiam aos pais como hoje. O respeito era muito maior. “Meu pai tinha uma gurumbumba atrás do armário que ele jurava bater, mas nunca batia”. Alguns pais bastavam olhar para os filhos que eles já entendiam, não tinha essa coisa de filho desobedecendo, batendo os pés e sem limites. “É meu tempo não era assim”.
Saudade
“Eu tenho saudade do meu terreno. Da roça. De morar lá. Eu não tô boa mais para andar sozinha. Quando tinha a estrada velha eu vinha de lá pra cá a pé, era 2h30 a pé. Só passava um ônibus. Eu vim por comércio por causa do ‘veio’ – o marido, que fez a casa ali. Mamãe dizia assim, minha filha, você vai ‘pro comércio’, você vai comprar, do, debaixo do fogão até em cima. Lá no comércio era assim. – morar no comércio quer dizer morar na cidade. Tinha de comprar tudo. Lá não comprava lenha, não comprava carne, leite, frutas, rapadura, café, farinha. Lá era igual cidade. Tinha casa de finado Antino, finada Fiinha, tinha a casa de Terino, tinha minha casa, era uma cidade de casa. Foram saindo todos de lá, eu tenho muita saudade”, afirmou. – O texto foi produzido mantendo a linguagem original de vovó.