MPC-ES questiona impactos ambientais na Lagoa de Mãe-Bá e acordo milionário de transação fiscal entre Samarco e Prefeitura de Anchieta

MPC-ES aponta danos ambientais e irreversíveis na Lagoa de Mãe-Bá em Anchieta e pede inclusão da Samarco, Vale e BHP em denúncia. Questiona também a transação tributária realizada entre prefeitura e mineradora.

Há mais de três décadas, segunda maior lagoa do Estado sofre graves implicações ambientais com a operação da mineradora. Imagens de satélite revelam a dimensão do dano ambiental. Ação do MPC-ES questiona acordo milionário de isenção fiscal entre a Prefeitura de Anchieta e a Samarco, que prevê renúncia de receita pública de R$ 55 milhões sem contrapartida privada

Ministério Público de Contas do Espírito Santo (MPC-ES) deu entrada em recurso contra decisão do Tribunal de Contas do Espírito Santo (TCE-ES) em denúncia que questiona impactos ambientais e financeiros de transação tributária celebrada entre a Prefeitura de Anchieta e a Samarco Mineração S.A que reduz dívida tributária da mineradora em R$ 55 milhões.

O acordo prevê isenção fiscal retroativa do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) devido pela mineradora pelo prazo de 20 anos, o equivalente à redução da sua dívida tributária de R$ 140 milhões para R$ 85 milhões, sem contrapartida da empresa ou do grupo econômico que a constitui (50% Vale S.A. e 50% BHP Billiton Brasil Ltda.). Ele ainda incluiu o pagamento milionário de honorários advocatícios à Associação dos Procuradores Municipais de Anchieta (APMA), pela Samarco, no valor estimado de R$ 4,2 milhões.

No recurso (Agravo 7078/2024), o MPC-ES contesta a Decisão 1812/2023-7 e reitera o pedido de suspensão imediata da eficácia da transação tributária, promovida por meio do Decreto Municipal 5.896/2019, tendo em vista a ilegal redução do valor do débito do IPTU em benefício da mineradora, com efeitos retroativos e futuros sobre a arrecadação municipal.

A inclusão da Samarco Mineração S.A. no rol de responsáveis listados no Processo 784/2020, negada na decisão da 1ª Câmara do TCE-ES, também é ratificada no agravo, que ainda aponta a nulidade dos atos posteriores à decisão contestada, por ausência de intimação pessoal do MPC-ES.

DETALHES DO ACORDO

Esse acordo de transação tributária, cuja legalidade se discute no Processo 784/2020, teve como objetivo extinguir as ações judiciais de execução fiscal ajuizadas pelo município em razão de duas décadas de inadimplência fiscal do IPTU pela mineradora Samarco.

A transação redefiniu os limites das áreas de incidência e de isenção do IPTU em favor da empresa inadimplente, ao reduzir a área tributável de 350 hectares para 133 hectares e, com isso, diminuiu a base de cálculo do imposto.

Segundo consta no recurso, a criação irregular de Áreas de Preservação Permanente (APP) administrativa pela Prefeitura de Anchieta no imóvel da Samarco Mineração S.A. – incluindo a parte represada da Lagoa de Mãe-Bá (Barragem Norte), de 36 hectares (360 mil m2), que serve de depósito de rejeitos da mineração da usina de pelotização Ponta Ubu – motivou a celebração de transação tributária, a qual, por sua vez, foi utilizada como fundamento para a extinção das execuções fiscais ajuizadas pelo município de Anchieta contra a empresa.

Assim, com a revisão das áreas protegidas por lei, novos trechos da empresa mineradora passaram a não serem mais atingidos pela tributação de IPTU.

(…) revela-se patente o desvio de finalidade do ato administrativo do Chefe do Poder Executivo municipalSr. Fabrício Petri, consubstanciado pelo Decreto Municipal 5.896/2019, na medida em que se destinou precipuamente à concessão de benefício fiscal indevido à Samarco Mineração S.A. (interesse privado) e não à proteção do meio ambiente (interesse público), que já se encontrava protegido em razão da existência de Área de Preservação Permanente (APP) e de Reserva Legal (RL) situada em região com vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica.”  Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 784/2020

aspecto ambiental se encontra, portanto, no cerne da questão levada ao Tribunal de Contas, por ter servido de fundamento para a redefinição da área tributável, gerando efeitos jurídicos todos os anos por ocasião da ocorrência do fato gerador do IPTU.

Conforme o recurso, o acordo administrativo celebrado entre o município e a mineradora está permeado de irregularidades que afetam diretamente a sustentabilidade da Lagoa de Mãe-Bá, uma área de proteção ambiental degradada pelas atividades da Samarco.

Para o MPC-ES, o histórico da poluição causada à Lagoa de Mãe-Bá pela Samarco torna ilegítima a concessão de qualquer benefício fiscal que premie a poluidora por suposta proteção ambiental na área do seu empreendimento, tendo em vista a natureza indivisível da área de proteção ambiental a ser salvaguardada

GRAVE ERRO DE GESTÃO PÚBLICA

O MPC-ES reforça que a transação tributária, homologada sem uma avaliação adequada dos impactos ambientais e financeiros, é um grave erro de gestão pública. A isenção retroativa de impostos, concedida à empresa responsável por um dos maiores passivos ambientais do Estado – atualmente em regime de recuperação judicial –, é um claro exemplo de como o poder público tem falhado na proteção do meio ambiente e dos interesses da sociedade.

Na avaliação do MPC-ES, o benefício fiscal concedido à Samarco, além de questionável do ponto de vista jurídico e financeiro, ignora o passivo ambiental existente. Diante disso, espera que o Tribunal de Contas reverta a decisão, suspendendo imediatamente os efeitos da transação, pois considera inadmissível que uma empresa responsável por tamanha destruição ambiental continue a ser beneficiada, enquanto a sociedade arca com as consequências ecológicas e financeiras.

O órgão ministerial acredita que a ausência de uma análise ambiental criteriosa por parte dos órgãos competentes coloca em risco o equilíbrio ecológico da região. Argumenta ainda, no recurso, que além de possível dano ao erário, o acordo também pode comprometer os esforços de recuperação ambiental da Lagoa de Mãe-Bá, já extremamente degradada pela atividade mineradora. Por isso, defende a necessidade de uma fiscalização rigorosa do Instituto Estadual de Meio Ambiente (Iema) a suspensão imediata da eficácia da transação, a fim de evitar maiores prejuízos à sociedade e ao meio ambiente.

O HISTÓRICO DA LAGOA E A DENÚNCIA

Vídeo produzido a partir de 900 imagens públicas de satélite, obtidas entre 1973 e 2019, revela a frequência de lançamento de rejeitos de minério na parte represada da Lagoa de Mãe-Bá – Barragem Norte, com consequências semelhantes à contaminação provocada pelo rompimento da Barragem de Fundão, em Mariana (MG), à Bacia do Rio Doce, guardadas as devidas proporções. Confira o vídeo abaixo:

Esse vídeo foi produzido pelo MPC-ES ao apresentar aditamento à denúncia que trata sobre o assunto. O órgão ministerial afirma que o represamento de parte da Lagoa de Mãe-Bá pela Samarco criou uma “Área de Poluição Permanenteespécie de APP (Área de Preservação Permanente) às avessas e essa constatação se alinha a denúncias de pescadores e moradores locais, bem como é citada pelo Mapa de Conflitos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

 Pescadores denunciam morte de lagoa que recebe rejeitos da Samarco em Anchieta

Lagoa que recebe rejeitos da Samarco agoniza em Anchieta

Lagoa recebe rejeitos da Samarco em Anchieta e pescadores reclamam

Denúncia de poluição em Lagoa perto da Samarco

Comparações entre o estado da lagoa durante o período de paralisação da Samarco, de 2016 a 2020, e o retrocesso observado nos últimos anos, após a retomada das atividades industriais, reforçam a ligação direta entre a operação da mineradora e a contaminação da lagoa.

“Fato é: de 2016 a 2020, quando a Samarco paralisou as atividades, a fauna e a flora da lagoa se renovaram por completo. Eu nunca tinha visto isso antes! A lagoa estava perfeita! As famílias voltaram a pescar, foi retomado um senso de pertencimento. Hoje, todas as aves foram embora novamente. Mergulhão, pato d’água, garça…o pouco que tem está morrendo”. Moisés da Cruz Costa, ambientalista e um dos idealizadores do projeto Mães que Fazem Mãe-Bá, em entrevista publicada no Século Diário em 10/07/2023

De acordo com a denúncia, há fortes indícios de que efluentes industriais produzidos no processo de pelotização, armazenados na Bacia de Polpa de minério, são lançados sem tratamento adequado na parte da Lagoa de Mãe-Bá represada artificialmente pela empresa mineradora. Assim, ela constitui um verdadeiro depósito de rejeitos de minério oriundo de sua atividade industrial e vem sendo utilizada pela Samarco como parte do sistema de tratamento de efluentes da usina de pelotização.

O documento ainda detalha que a parte da Lagoa de Mãe-Bá represada pela Samarco Mineração S.A. – chamada pela empresa de Barragem Norte, construída em 1973 dentro da própria lagoa – foi integrada ao processo industrial em 1977 e transformada em barragem líquida de rejeitos.

A partir dessa informação, o MPC-ES constatou que “desde 1977, o segundo maior corpo d’água do Estado do Espírito Santo integra o processo industrial da Samarco”. Atualmente, suas águas são turvas e estão impróprias para consumo, banho e pesca, o que compromete a subsistência da comunidade do seu entorno, o lazer e o turismo.

Diante do elevado grau de poluição, há, inclusive, previsão do descomissionamento da lagoa após o fim das operações da empresa mineradora. Essa técnica, considerada agressiva, resulta na remoção da sua água e do seu leito, eliminando, assim, todos os vestígios de que ali, um dia, existiu uma lagoa.

“De acordo com a própria Samarco Mineração S.A., ao final da vida útil do empreendimento, ‘o volume armazenado no reservatório será gradativamente lançado na lagoa de Maembá e o material depositado em seu leito será retirado’, fazendo-se de contas para os órgãos ambientais e de controle que aquela área nunca fez parte da lagoa.” Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 784/2020

Em 2003, relatos de odor desagradável, gosto forte e problemas de saúde fizeram com que a Companhia de Saneamento do Espírito Santo (Cesan) interrompesse a captação das águas da Lagoa de Mãe-Bá para o abastecimento público. Por se tratar de um local eutrofizado – passou por eutrofização e, com isso, acumula mais organismos vivos e nutrientes em consequência da poluição das águas -, o processo de tratamento da água captada consumiria mais produtos químicos para remoção de microrganismos e demandaria outros processos, elevando os custos de tratamento da água.

Além do processo de eutrofização da Lagoa de Mãe-Bá, a contaminação de suas águas por metais pesados (em especial por mercúrio), decorrente do processo de operação da Samarco, é confirmada pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente no vídeo a seguir:

Reprodução de vídeo da TV Ambiental “Diagnóstico Ambiental – Lagoa de Mãe-Bá”

Em resposta enviada ao Iema, a própria mineradora revelou que sua instalação às margens da Lagoa de Mãe-Bá foi estratégica para aproveitar a grande quantidade de água disponível, essencial ao processo de pelotização do minério, gerando milhões de reais em economia para a empresa. Porém, ressalta o MPC-ES, a um alto custo socioambiental.

A combinação de coleta de água e recepção de resíduos em um único sistema coloca em risco a qualidade da água e a integridade dos ecossistemas locais, ao passo que agrava o dilema entre a eficiência industrial e a preservação ambiental. A denúncia expõe que o uso da barragem como depósito de efluentes aponta para uma estratégia que favorece o interesse econômico da empresa, enquanto os danos ambientais e sociais permanecem subvalorizados.

REALIDADE ALARMANTE

A situação exposta no recurso do MPC-ES revela uma realidade alarmante: a Lagoa de Mãe-Bá, que deveria ser uma área protegida e preservada, foi transformada em um reservatório de rejeitos industriais, comprometendo de forma irreversível o ecossistema e a vida da comunidade local.

A denúncia enfatiza que em vez de responsabilizar a Samarco pelos danos causados, o município de Anchieta concedeu uma isenção tributária milionária, premiando a empresa que, há décadas, manipula e polui esse importante patrimônio natural, subvertendo, assim, a lógica racional de que quem teria que pagar pelas tragédias ambientais e crises climáticas seriam aqueles que estão a ganhar com elas.

Para o MPC-ES, o benefício fiscal à Samarco não apenas viola a legislação ambiental, mas também afeta as finanças municipais, enquanto a empresa continua operando sem cumprir suas obrigações de preservação e recuperação do ecossistema. A decisão da prefeitura, complementa, significa um ataque direto aos interesses da sociedade, que vê sua natureza destruída e seus recursos financeiros comprometidos (mediante renúncia de receita pública) para beneficiar um grupo econômico transnacional (Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda).

“A Samarco S.A. está sendo desonerada de suas responsabilidades enquanto a Lagoa de Mãe-Bá sofre uma manipulação sem precedentes, afetando a biodiversidade e a qualidade de vida das comunidades locais, afirma.

Imagens divulgadas pelo projeto Mães que fazem Mãe-Bá no Instagram mostram a situação de degradação da lagoa em 27 de maio de 2023

Imagens divulgadas pelo projeto Mães que fazem Mãe-Bá no Instagram mostram a situação de degradação da lagoa em 27 de maio de 2023

ENTENDA O CASO

Em 2019, a Samarco Mineração S.A. foi agraciada com isenção tributária de IPTU com efeitos retroativos até 1999. A decisão administrativa tem base no reconhecimento, pelo município de Anchieta, de que parte da área da empresa estaria enquadrada como Área de Preservação Permanente (APP).

O caso chegou ao TCE-ES em 2020, por meio de uma denúncia de irregularidade envolvendo o referido acordo administrativo, que fora celebrado sob a forma de transação tributária entre a Samarco e a Prefeitura de Anchieta, homologado por sentença do Poder Judiciário, com o objetivo de extinguir as ações de execução fiscal originadas do não pagamento, durante duas décadas, do IPTU devido pela mineradora.

De acordo com a petição inicial, o município de Anchieta teria concedido redução irregular no valor total do imposto devido pela empresa, renunciando ao recebimento de aproximadamente R$ 70 milhões, sem prévia autorização da Câmara de Anchieta, por meio de lei específica, acolhendo proposta formulada pela própria empresa e selando o pacto no valor restante de R$ 85 milhões.

Ainda segundo o denunciante, a celebração do acordo com uma significativa redução do montante devido pela mineradora teria como objetivo proporcionar um suposto rateio da verba honorária sucumbencial entre os agentes públicos municipais envolvidos – todos sem vínculo permanente com o município, sendo ocupantes de cargos comissionados ou eletivos -, no valor estimado de R$ 9 milhões. Tal valor seria recebido por meio da Associação de Procuradores Municipais de Anchieta (CNPJ: 23.459.569/0001-15), entidade supostamente utilizada para dissimular a distribuição dos honorários entre os servidores públicos.

De acordo com o MPC-ES, a associação foi criada, em 2015, – mesmo ano de criação da Lei Municipal 1109/2015, a qual autorizou o pagamento de honorários sucumbenciais – para representar apenas os novos procuradores do município. Isso, aliado à disputa judicial pelo direito de perceber honorários advocatícios milionários revela o uso desvirtuado da entidade de classe, que teria funcionado como mera intermediária no recebimento e na distribuição dos honorários advocatícios, sem qualquer fiscalização por parte do município.

“A Associação de Procuradores pleiteou – e conseguiu – a transferência dos honorários diretamente para a sua conta bancária, em desacordo com o que preceitua o art. 7º do referido Decreto 5.242/2015, que estabelece que os honorários sucumbenciais devem ser contabilizados como receita extraorçamentária do Município para posterior rateio entre os Procuradores Municipais.” Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 784/2020

Esse ponto da denúncia motivou o MPC-ES a pedir ao Tribunal de Contas que defina regras para a divisão de honorários advocatícios em ações em que a Fazenda Pública for vencedora, o qual foi acatado pela 1ª Câmara, em agosto último, ao determinar a instauração de prejulgado sobre o tema.

A denúncia inicial também afirma que a transação tributária teria sido formulada pela própria Samarco, e não pelo município de Anchieta, guardando estreita relação com a contratação e patrocínio de métodos que corromperam o processo legislativo, a exemplo da notícia da BBC Brasil intitulada “Novo código da mineração é escrito em computador de advogado de mineradoras”, da qual se extrai que o projeto de lei do Código de Mineração foi alterado por advogado vinculado a escritório de advocacia que defende os interesses dos grupos econômicos transnacionais Vale e BHP.

O Processo 784/2020 envolve muito mais do que uma simples notícia de possíveis irregularidades na transação tributária celebrada entre a Prefeitura de Anchieta e a Samarco, pois alcança as competências ambientais do município, cujo exercício resultou na declaração de parte da área da Samarco como Área de Preservação Permanente, permitindo que a mineradora, após ter deixado de pagar IPTU por 20 anos, fosse beneficiada por isenção fiscal retroativa ao ano de 1999, no valor aproximado de R$ 55 milhões.

Ao emitir parecer e propor aditamento à denúncia, o MPC-ES apresentou a divisão dos fatos em três aspectos: ambiental, tributário e processual. Isso se deve à constatação da existência de uma relação de causa e efeito entre a declaração de parte da área da Samarco como APP (aspecto ambiental), a celebração da transação tributária entre o município de Anchieta e a Samarco (aspecto tributário) e a prolação da sentença meramente homologatória que extinguiu as ações de execução fiscal (aspecto processual).

Em outras palavras, a criação de APP pelo Município de Anchieta no imóvel da Samarco Mineração S.A. motivou a celebração de Transação Tributária Administrativa, a qual, por sua vez, foi utilizada como fundamento para a extinção das ações de execução fiscal.” Trecho do Parecer do MPC-ES no Processo 784/2020

Outros indícios foram apontados no Parecer do Ministério Público de Contas 5537/2022, dos quais se destacam:

a) graves violações à legislação ambiental praticadas pela empresa mineradora, consistentes no represamento de parte da Lagoa de Mãe-Bá para utilização como “Área de Poluição Permanente”, onde são depositados, periodicamente, rejeitos líquidos do processamento de minério de ferro há pelo menos 30 anos;

b) poluição da área litorânea do município de Anchieta, no litoral Sul capixaba, gerada pelas operações de exportação do Terminal Marítimo da Samarco, contendo subprodutos originados do processo de beneficiamento do minério de ferro extraído no Estado de Minas Gerais e transportado para o Estado do Espírito Santo por meio de minerodutos, atividade considerada altamente poluidora, motivo pelo qual sua realização nos países importadores está sujeita a sérias – e efetivas – restrições ambientais, ao contrário do que ocorre no Brasil;

c) pagamento irregular de honorários advocatícios sucumbenciais milionários aos advogados públicos da prefeitura por meio da Associação dos Procuradores do Município de Anchieta (APMA), à margem de qualquer controle administrativo sobre o teto remuneratório constitucional e sobre o recolhimento do imposto de renda incidente sobre as referidas verbas remuneratórias proporcionadas pelo exercício do cargo público.

Portanto, o caso trata de questões de grande relevância pública, especialmente no que tange à matéria ambiental, em relação às quais deve prevalecer o direito fundamental do cidadão à informação sobre o interesse privado dos grupos econômicos exploradores, Vale e BHP, beneficiados pelo acordo administrativo e corresponsáveis pelos atos de violação à legislação ambiental praticados pela sua joint venture Samarco Mineração.

Com base nesse ponto que trata da responsabilidade ambiental, o MPC-ES pediu a inclusão das três mineradoras no processo: Samarco, Vale e BHP. No entanto, a área técnica do Tribunal de Contas ainda não fez a análise desse aspecto, pois considerou necessária nova instrução processual após o parecer ministerial com o aditamento à denúncia.

Ao se debruçar sobre a questão, o órgão ministerial realizou uma análise do histórico das imagens de satélite da área sobre a qual incidiu a isenção fiscal e constatou que o grupo econômico minerador se apropriou de parte da segunda maior lagoa do Espírito Santo – a maior é a Lagoa Juparanã, em Linhares – para utilizá-la como depósito de rejeitos do processamento de minério de ferro, criando uma verdadeira “Área de Poluição Permanente”, a ensejar a nulidade de todos os benefícios fiscais concedidos, entre outras consequências jurídicas.

Imagem extraída do Google Earth em 05/04/2021 com atual planta industrial da Samarco Mineração em Anchieta (esquerda) e imagem do trecho considerado Área de Preservação Permanente (APP) FOTOS: REPRODUÇÃO GOOGLE EARTH

Usando técnicas de sensoriamento remoto, foram analisadas imagens de satélites capturadas entre 1973 e 2019 (ano do acordo), disponibilizadas pelo Serviço Geológico dos Estados Unidos (USGS), as quais revelaram a exploração predatória de recursos naturais por parte dos grupos econômicos mineradores.

Essa constatação reafirma a necessidade de participação ativa da sociedade para se transcender às infrutíferas tentativas de solucionar o problema da poluição por meio de complacentes e ineficazes medidas administrativas, habitualmente ignoradas ou capturadas pela força do poder econômico – e político – de grupos econômicos transnacionais.

TRAMITAÇÃO PROCESSUAL

O caso está sob análise do TCE-ES, tanto o recurso, como a denúncia aditada pelo MPC-ES, que ainda não teve todos os pontos analisados pela área técnica da Corte de Contas.

Quanto ao aspecto processual, em uma das manifestações emitidas no Processo 784/2020, a área técnica da Corte de Cortas ressaltou a complexidade do caso e, seguindo a divisão feita pelo MPC-ES, destaca que o aspecto processual trata dos “efeitos da sentença meramente homologatória que extinguiu as execuções fiscais” e foi usada pelo prefeito de Anchieta como fundamento para “tentar impedir a fiscalização dos fatos por parte deste Tribunal de Contas”. Com isso, o recurso ministerial pede a inclusão da Samarco como parte responsável para que ela possa ser citada para prestar os devidos esclarecimentos em relação a esse ponto.

Já em relação à ausência de notificação do MPC-ES, conforme exigência prevista na Lei Orgânica do TCE-ES (Lei Complementar 621/2012) e no Regimento Interno da Corte de Contas (Resolução 261/2013), o órgão ressalta que “nada, absolutamente nada, justifica o fato de o processo não ter sido encaminhado oportunamente ao Ministério Público de Contas para manifestação sobre os posicionamentos técnicos e ciência da decisão interlocutória ora agravada.”

De acordo com as normas citadas, a comunicação dos atos e decisões ao MPC-ES será feita pessoalmente, mediante a entrega dos autos com vista, sob pena de nulidade, o que não ocorreu nesse caso.

Ao detalhar o que considera uma falha processual grave, o órgão ministerial registra que, após emitir o parecer em que promoveu o aditamento à denúncia, houve uma série de manifestações técnicas (Manifestação Técnica 00982/2023-3Manifestação Técnica 1786/2024-6Manifestação Técnica 2048/2024-3 e Manifestação Técnica 2261/2024-4) e decisões interlocutórias (Decisão 1812/2023-7Decisão 2205/2024-1 e Decisão 2549/024-1), no intervalo de um ano e quatro meses, sem que o MPC-ES fosse devidamente intimado a se manifestar.

“O envio dos autos ao MPC para ciência de decisões colegiados em processos de controle externo não pode se submeter à deliberação circunstancial de servidores, mas sim fazer parte de uma rotina automatizada que possua mecanismos de segurança redundantes, motivo pelo qual este Parquet de Contas, no intuito de contribuir para o aprimoramento do rito processual neste Tribunal de Contas, sugere a adoção de providências administrativas propositivas ao final do presente recurso.” Trecho do Agravo 7078/2024

Diante desta situação, o MPC-ES almeja o reconhecimento da nulidade dos atos posteriores à Decisão 01812/2023-7, reafirmando a necessidade de estrita observância às normas processuais para garantir a integridade do controle externo exercido pelo Tribunal de Contas. Além disso, propõe a criação de rotina automatizada no sistema de processo eletrônico e-tcees.

agravo interposto pelo MPC-ES (Processo 7078/2024) tem como relator o conselheiro Davi Diniz de Carvalho. Ele conheceu o recurso, por meio da Decisão Monocrática 00830/2024-1, ele conheceu o recurso e encaminhou os autos ao Núcleo de Controle Externo de Recursos e Consultas para instrução.

MAQUIAGEM VERDE E AMBIENTALISMO DE CONVENIÊNCIA

O MPC-ES também questiona a utilização da estratégia de Greenwashing” pela mineradora Samarco e suas controladoras (Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda.) – expressão que significa “maquiagem verde”, “lavagem verde” ou ainda “banho verde” –, prática na qual as empresas exageram ou falsamente alegam seus esforços ambientais para parecerem mais ecologicamente corretas do que realmente são.

O órgão ministerial afirma que danos ambientais irreversíveis das atividades de mineração no Brasil costumam ser ressignificados por mecanismos publicitários como o greenwashing, de forma que ações adotadas pelas grandes poluidoras são divulgadas como se fossem um “privilégio” concedido à sociedade, verdadeiro “favor” dado pelas empresas que deveria ser merecedor de reconhecimento público.

A prática de greenwashing” também está associada ao ambientalismo de conveniência ou ambientalismo de forma seletiva, no qual ações pró-ambiente são feitas apenas quando são convenientes ou rentáveis, sem um comprometimento real com a sustentabilidade ou a proteção ambiental. O compromisso com a preservação ambiental não é genuíno, mas sim superficial, sendo utilizado como estratégia de marketing.

Ele cita como exemplo, no recurso, notícia recente publicada por diversos veículos de comunicação revelando que o dano ambiental causado à Praia de Camburi por “resquícios de minério de ferro” se revelou tão severo que exigiu a remoção da areia. Não por coincidência, aponta, essa é a mesma “solução” proposta pelos grupos econômicos para recuperar a parte da Lagoa de Mãe-Bá utilizada como depósito permanente de rejeitos de minério em Anchieta.

Na denúncia, outro exemplo mencionado é a Feira do Verde, tradicional evento de educação ambiental do Espírito Santo, promovido, até então, anualmente pela Prefeitura de Vitória. Ele foi cancelado em 2015, após 25 anos de realização ininterrupta, devido à tragédia ambiental ocasionada pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração, ocorrida na tarde de 5 de novembro de 2015, no município de Mariana, Minas Gerais, estado que vivencia um rompimento de barragem de rejeitos de minério, em média, a cada dois anos.

A barragem, controlada pela Samarco, um empreendimento conjunto – joint venture – composto pelas maiores empresas de mineração do mundo, a mineradora e petrolífera anglo-australiana BHP e a mineradora brasileira Vale S.A., paradoxalmente patrocinadora habitual do evento de educação ambiental Feira do Verde, cujo tema, na edição anterior de 2014 versou justamente sobre “Educação ambiental: contribuindo para a construção de sociedades sustentáveis”.

Também nessa lógica se encontram o Atlântica Parque, os Parques Botânico e Costeiro da Vale, recém-inaugurado, todos localizados em Jardim Camburi, próximo às instalações das fontes de emissão do “pó preto” pela Vale e ArcelorMittal.

Imagem da campanha do Public Eye Awards 2012 sobre a Vale: “Transformamos florestas tropicais em minas e represas. Custe o que custar” FOTO: DIVULGAÇÃO/PUBLIC EYE/REVISTA EXAME

Outro fato mencionado na denúncia é a premiação recebida pela Vale, em 2012, o Public Eye Awards de pior empresa do mundo. Popularmente conhecida como “Oscar da Vergonha”, a premiação era organizada pelas ONGs Greenpeace Suíça e Declaração de Berna – esta mudou seu nome para Public Eye em 2016 – paralelamente ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, visando atrair a atenção da mídia para casos de violação dos direitos humanos e danos ao meio ambiente. A vitória da Vale se deu em razão de sua “história de 70 anos manchada por repetidas violações dos direitos humanos, condições desumanas de trabalho, pilhagem do patrimônio público e pela exploração cruel da natureza”, conforme a Revista Exame.

Na ocasião, o cartaz elaborado pela premiação para divulgar a Vale trazia a imagem (acima) de um rio represado por uma barragem sob o olhar de um indígena, na qual se lê, em tradução livre do inglês, “Nós transformamos florestas tropicais em minas e represas. Custe o que custar”. Segundo a reportagem, a Vale se posicionou à época afirmando, em seu então último relatório de sustentabilidade, que “procura atuar com responsabilidade socioeconômica e ambiental nos territórios onde está presente, durante o ciclo de vida de seus empreendimentos e visa à construção de um legado positivo observando neste processo os termos globais de sustentabilidade.

Já em 2020, a empresa foi excluída da relação de investimentos do Fundo soberano da Noruega (Norges Bank Investment), maior fundo de investimentos do mundo, com aplicações que superam 1 trilhão de dólares, devido a preocupações ambientais e de direitos humanos, haja vista os danos ambientais severos causados pela mineradora com repetidas rupturas de barragens.

CONFLITO DE INTERESSES E AMBIENTALISMO DE GABINETE

Ciente do histórico de denúncias de interferências indevidas dos grupos econômicos transnacionais nos órgãos de controle, o MPC-ES registrou, no parecer em que fez aditamento à denúncia, a preocupação com a condução do caso e reafirmou a sua confiança na independência do TCE-ES.

“A força do poder do capital econômico transnacional das empresas poluidoras, que coloca a todos dependentes das atividades da mineradora, se alastra pelas estruturas do Estado com inúmeras ramificações e assim subjuga países, governos, instituições e autoridades e submete os órgãos de controle estatais a um estado de profunda domesticação”, narra o parecer.

Acrescenta que o aprisionamento econômico gerado pelas empresas mineradoras (minério-dependência), utilizado como instrumento de coerção, além de impossibilitar uma diversificação da economia (minério-empobrecimento), ainda conta com parte significativa da classe trabalhadora da região refém exclusivamente da atividade de mineração. Tal situação não permite que ambientalistas com histórico de defesa do meio ambiente possam ocupar cargos de direção em órgãos ambientais estratégicos do Estado para se enfrentar a minério-devastação, sendo normalmente preteridos pela nomeação de pessoas pinçadas dos quadros das próprias empresas poluidoras.

A título de exemplo do grau de penetração das empresas em órgãos estratégicos dos Poderes Públicos, o parecer ministerial cita o caso do atual diretor-presidente do Iema, Alaimar Ribeiro Rodrigues Fiuza, que foi funcionário de carreira da Vale por mais de 30 anos. Ele deixou suas funções na empresa mineradora em janeiro de 2019, passando a dirigir o órgão responsável pela concessão das licenças ambientais à própria mineradora de onde proviera.

Dois outros casos são comentados no aditamento à denúncia como confirmação da existência de uma “porta giratória” destravada e sem qualquer espécie de controle entre o setor público e o privado. A expressão é usada para descrever situações em que agentes públicos assumem cargos no setor privado em áreas relacionadas às suas atividades anteriores no governo, ou quando ex-funcionários da iniciativa privada ingressam no governo com poder para regular os setores em que atuavam.

São eles: o do ex-governador Paulo César Hartung Gomes (2003 a 2010; 2015 a 2018), que possui assento no poderoso Conselho de Administração da Vale e também é o presidente executivo do IBÁ (Indústria Brasileira de Árvores); e o da ex-secretária estadual do Meio Ambiente Maria da Glória Brito Abaurre. Ela ocupou o cargo de 2004 a 2010 e o assumiu enquanto ainda integrava o quadro societário da Cepemar Serviços de Consultoria em Meio Ambiente Ltda e prestava serviços de consultoria ambiental ao Iema, órgão para o qual foi designada para responder, de forma concomitante à pasta do Meio Ambiente.

Também nessa linha, o MPC-ES demonstra uma relação direta entre as irregularidades que favoreceram a Samarco com benefícios fiscais retroativos da ordem de R$ 55 milhões e a atuação da secretária de Meio Ambiente de AnchietaJéssica Martins de Freitas, “qualificada como bióloga”. Conforme a denúncia, mesmo sem atribuição legal, ela “elaborara de próprio punho Relatório Técnico Ambiental com justificativas genéricas, em parte extraídas do próprio texto legal, as quais serviriam para justificar qualquer trabalho de natureza semelhante”.

Para o MPC-ES, esse fato revela a necessidade de aperfeiçoamento dos mecanismos de seleção dos ocupantes dos cargos de direção dos órgãos ambientais, responsáveis pela concessão e fiscalização das licenças necessárias à exploração dos empreendimentos patrocinados pelos grandes grupos econômicos que operam no Estado do Espírito Santo.

“A criação de poderosas entidades representativas dos interesses privados de grandes grupos econômicos, tendo por finalidade institucional a obtenção de privilégios – nem sempre legítimos – junto aos Poderes Públicos para suas empresas associadas, prática conhecida como lobby e normalmente conduzida por agentes com elevado capital político e detentores de informações privilegiadas, com livre acesso a agentes públicos do alto escalão, revelou-se uma estratégia bem-sucedida no Brasil, numa espécie de neocolonialismo empresarial praticado por grupos econômicos transnacionais com a anuência dos agentes políticos locais.” Trecho do parecer ministerial no Processo 784/2020

A fim de exemplificar o funcionamento da prática de lobby, a denúncia cita o IBÁ, entidade que representa 57 grandes empresas com atuação na exploração de recursos naturais (árvores plantadas), beneficiando-se do “relacionamento próximo com parlamentares no Congresso, Câmara dos Deputados e Senado Federal, além de Ministros de Estado”, conforme descrito no sítio oficial da entidade. Nessa lista de empresas está a Suzano S.A., que, em 2012, consolidou a aquisição do controle total das empresas do Grupo Cepemar, sendo ambas mantenedoras do Movimento Empresarial Espírito Santo em Ação.

LEGADO DE DESTRUIÇÃO AMBIENTAL

VÍDEO: Rio Doce ainda sofre com contaminação pelo desastre de Mariana-MG | SBT Brasil (04/11/17)

Embora a Samarco se autopromova como empresa sustentável, além de contribuir com a poluição atmosférica do ar (conhecida popularmente como “pó preto”), a mineradora usa a Lagoa de Mãe-Bá, a segunda maior do Espírito Santo, para lançar rejeitos industriais sem o tratamento devido. Ela também está diretamente ligada a algumas das maiores tragédias ambientais do Brasil – e que infligiram especialmente o Espírito Santo –, impactando profundamente a população e o meio ambiente na última década.

Conforme expõe o MPC-ES em aditamento à Denúncia 784/2020, as tragédias ocorridas em Mariana, em 2015, e em Brumadinho revelam que a Samarco e suas controladoras, Vale BHP Billiton, conquistaram junto ao Estado brasileiro o direito de falhar e de continuar falhando em relação à segurança de seus empreendimentos, deixando um legado extremamente negativo, sob todos os aspectos, para as comunidades afetadas pelos empreendimentos de mineração em Minas Gerais e no Espírito Santo. Veja abaixo outros desastres ambientais envolvendo as empresas.

O órgão ministerial enfatiza a importância de uma ação firme e rigorosa por parte do TCE-ES no campo ambiental, tendo em vista os efeitos maléficos da poluição dos recursos hídricos sobre a saúde humana e o ecossistema. Com essa atuação, o MPC-ES reafirma sua missão constitucional de zelar pela defesa da ordem jurídica e pela garantia a direitos constitucionais, especialmente o direito fundamental a um meio ambiente seguro e equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida desta e das futuras gerações.

VEJA MAIS

Confira o Agravo do MPC-ES (Processo 7078/2024)

Veja a decisão de conhecimento do Agravo (Processo 7078/2024)

Confira o andamento do Processo 7078/2024

Veja o Parecer do MPC-ES com aditamento à Denúncia (Processo 784/2020)

Confira o andamento do Processo 0784/2020

Fonte: MPCES

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