OPINIÃO: O BRASIL PRECISA VOLTAR A CONVERSAR
Artigo de opinião de Flávia Cysne, administradora.
Tenho 50 anos, nasci em 1970. Cantei as músicas do período da ditadura, conheci o verde e amarelo e me apaixonei pelo Brasil ainda criança. Participei aos 12 anos de uma candidatura de meu pai a prefeito de Itapemirim (1982), o que me permitiu um primeiro contato com as agruras sociais de nosso País. Vi grupos políticos com práticas erradas para chegar ao poder e conluios com a justiça vigente, com meu olhar infantil aguçado.
Filha de médico e professora, éramos a classe média passando pela repressão daquele período de transição da intervenção militar para a democracia. Avançamos muito neste período. Não sou economista para fazer análise profunda. Mas, como administradora e tendo a experiência de vida de participar por mais de 30 anos de campanhas onde ajudei a eleger, fui candidata, me elegi prefeita por dois mandatos, exerci cargos públicos de gestão e assessoramento, ajudei a eleger políticos de todo País, posso dizer que este é o caminho que tem que ser analisado.
A necessidade de abrir à imprensa, a liberdade de expressão e as bases para a construção do Estado democrático foram as bases para um caminho que seria trilhado pelos próximos anos.
É preciso sentir o que os brasileiros sentiram neste período e analisar onde a direita deixou de participar do processo ou perdeu suas bases de apoio nos Congressos Nacionais que se seguiram, na Constituinte de 1988, nas câmaras estaduais, municipais, prefeituras. Um Brasil foi construído neste período.
Digo, com toda a certeza, que se faz necessário retomar o fragmento de tempo, para que busquemos o diálogo de onde houve um distanciamento tal, onde a única saída foi colocar um presidente no Brasil onde os brasileiros se dividem de forma cruel e avassaladora.
É preciso que nos encontremos para conversar. Sem gurus e especialistas. Apenas gente de bom senso. Nos municípios, nas câmaras municipais, na sociedade organizada onde o povo brasileiro está. Uma chamada do povo para o povo, para esta reflexão.
Nesta semana, 152 bispos da CNBB, assinaram “Carta ao Povo de Deus”. O documento será analisado pelo conselho permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Cabe ressaltar que comungo com as reflexões dos Bispos. Minha primeira filiação foi o PL, Partido Liberal, de centro direita, hoje PR. Fui eleita pelo PP – Partido Progressista, também de centro direita, porém, tem em seus estatutos a defesa do trabalhador e do proletariado. Encontrei-me no PSB, que atuou no centro esquerda e agora se posicionou na esquerda. Independente de posição política, conclamo à mesa as pessoas que querem acordo. Longe de ser acordo com o sentido de negociata, como os políticos mais novos se referem, para não sentarem e escutarem os mais experientes. Sim, acordo de damas e cavalheiros que se propõem a caminhar lado a lado por uma democracia em nosso amado País.
“Não podemos aceitar que a Doutrina Social da Igreja seja desvirtuada pelos bispos comunistas que fizeram a carta para o Papa”, continua a convocação (disseram um grupo de católicos que se manifestaram contra a carta que se segue, postado pelo jornal Opinião ES, em 31/07). Sugiro que a igreja católica também chame seus membros para o diálogo. Imagino a discussão e abalo de fé em cima deste tema que divide o País. O Brasil precisa voltar a conversar.
LEIA A CARTA NA ÍNTEGRA
“Somos bispos da Igreja Católica, de várias regiões do Brasil, em profunda comunhão com o Papa Francisco e seu magistério e em comunhão plena com a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que no exercício de sua missão evangelizadora, sempre se coloca na defesa dos pequeninos, da justiça e da paz. Escrevemos esta Carta ao Povo de Deus, interpelados pela gravidade do momento em que vivemos, sensíveis ao Evangelho e à Doutrina Social da Igreja, como um serviço a todos os que desejam ver superada esta fase de tantas incertezas e tanto sofrimento do povo.
Evangelizar é a missão própria da Igreja, herdada de Jesus. Ela tem consciência de que “evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Alegria do Evangelho, 176). Temos clareza de que “a proposta do Evangelho não consiste só numa relação pessoal com Deus. A nossa reposta de amor não deveria ser entendida como uma mera soma de pequenos gestos pessoais a favor de alguns indivíduos necessitados […], uma série de ações destinadas apenas a tranquilizar a própria consciência. A proposta é o Reino de Deus […] (Lc 4,43 e Mt 6,33)” (Alegria do Evangelho, 180). Nasce daí a compreensão de que o Reino de Deus é dom, compromisso e meta.
É neste horizonte que nos posicionamos frente à realidade atual do Brasil. Não temos interesses político-partidários, econômicos, ideológicos ou de qualquer outra natureza. Nosso único interesse é o Reino de Deus, presente em nossa história, na medida em que avançamos na construção de uma sociedade estruturalmente justa, fraterna e solidária, como uma civilização do amor.
O Brasil atravessa um dos períodos mais difíceis de sua história, comparado a uma “tempestade perfeita” que, dolorosamente, precisa ser atravessada. A causa dessa tempestade é a combinação de uma crise de saúde sem precedentes, com um avassalador colapso da economia e com a tensão que se abate sobre os fundamentos da República, provocada em grande medida pelo Presidente da República e outros setores da sociedade, resultando numa profunda crise política e de governança.
Este cenário de perigosos impasses, que colocam nosso País à prova, exige de suas instituições, líderes e organizações civis muito mais diálogo do que discursos ideológicos fechados. Somos convocados a apresentar propostas e pactos objetivos, com vistas à superação dos grandes desafios, em favor da vida, principalmente dos segmentos mais vulneráveis e excluídos, nesta sociedade estruturalmente desigual, injusta e violenta. Essa realidade não comporta indiferença.
É dever de quem se coloca na defesa da vida posicionar-se, claramente, em relação a esse cenário. As escolhas políticas que nos trouxeram até aqui e a narrativa que propõe a complacência frente aos desmandos do Governo Federal, não justificam a inércia e a omissão no combate às mazelas que se abateram sobre o povo brasileiro. Mazelas que se abatem também sobre a Casa Comum, ameaçada constantemente pela ação inescrupulosa de madeireiros, garimpeiros, mineradores, latifundiários e outros defensores de um desenvolvimento que despreza os direitos humanos e os da mãe terra. “Não podemos pretender ser saudáveis num mundo que está doente. As feridas causadas à nossa mãe terra sangram também a nós” (Papa Francisco, Carta ao Presidente da Colômbia por ocasião do Dia Mundial do Meio Ambiente, 05/06/2020).
Todos, pessoas e instituições, seremos julgados pelas ações ou omissões neste momento tão grave e desafiador. Assistimos, sistematicamente, a discursos anticientíficos, que tentam naturalizar ou normalizar o flagelo dos milhares de mortes pela COVID-19, tratando-o como fruto do acaso ou do castigo divino, o caos socioeconômico que se avizinha, com o desemprego e a carestia que são projetados para os próximos meses, e os conchavos políticos que visam à manutenção do poder a qualquer preço. Esse discurso não se baseia nos princípios éticos e morais, tampouco suporta ser confrontado com a Tradição e a Doutrina Social da Igreja, no seguimento Àquele que veio “para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Analisando o cenário político, sem paixões, percebemos claramente a incapacidade e inabilidade do Governo Federal em enfrentar essas crises. As reformas trabalhista e previdenciária, tidas como para melhorarem a vida dos mais pobres, mostraram-se como armadilhas que precarizaram ainda mais a vida do povo. É verdade que o Brasil necessita de medidas e reformas sérias, mas não como as que foram feitas, cujos resultados pioraram a vida dos pobres, desprotegeram vulneráveis, liberaram o uso de agrotóxicos antes proibidos, afrouxaram o controle de desmatamentos e, por isso, não favoreceram o bem comum e a paz social. É insustentável uma economia que insiste no neoliberalismo, que privilegia o monopólio de pequenos grupos poderosos em detrimento da grande maioria da população.
O sistema do atual governo não coloca no centro a pessoa humana e o bem de todos, mas a defesa intransigente dos interesses de uma “economia que mata” (Alegria do Evangelho, 53), centrada no mercado e no lucro a qualquer preço. Convivemos, assim, com a incapacidade e a incompetência do Governo Federal, para coordenar suas ações, agravadas pelo fato de ele se colocar contra a ciência, contra estados e municípios, contra poderes da República; por se aproximar do totalitarismo e utilizar de expedientes condenáveis, como o apoio e o estímulo a atos contra a democracia, a flexibilização das leis de trânsito e do uso de armas de fogo pela população, e das leis do trânsito e o recurso à prática de suspeitas ações de comunicação, como as notícias falsas, que mobilizam uma massa de seguidores radicais.
O desprezo pela educação, cultura, saúde e pela diplomacia também nos estarrece. Esse desprezo é visível nas demonstrações de raiva pela educação pública; no apelo a ideias obscurantistas; na escolha da educação como inimiga; nos sucessivos e grosseiros erros na escolha dos ministros da educação e do meio ambiente e do secretário da cultura; no desconhecimento e depreciação de processos pedagógicos e de importantes pensadores do Brasil; na repugnância pela consciência crítica e pela liberdade de pensamento e de imprensa; na desqualificação das relações diplomáticas com vários países; na indiferença pelo fato de o Brasil ocupar um dos primeiros lugares em número de infectados e mortos pela pandemia sem, sequer, ter um ministro titular no Ministério da Saúde; na desnecessária tensão com os outros entes da República na coordenação do enfrentamento da pandemia; na falta de sensibilidade para com os familiares dos mortos pelo novo coronavírus e pelos profissionais da saúde, que estão adoecendo nos esforços para salvar vidas.
No plano econômico, o ministro da economia desdenha dos pequenos empresários, responsáveis pela maioria dos empregos no País,
privilegiando apenas grandes grupos econômicos, concentradores de renda e os grupos financeiros que nada produzem. A recessão que nos assombra pode fazer o número de desempregados ultrapassar 20 milhões de brasileiros. Há uma brutal descontinuidade da destinação de recursos para as políticas públicas no campo da alimentação, educação, moradia e geração de renda.
Fechando os olhos aos apelos de entidades nacionais e internacionais, o Governo Federal demonstra omissão, apatia e rechaço pelos mais pobres e vulneráveis da sociedade, quais sejam: as comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas, as populações das periferias urbanas, dos cortiços e o povo que vive nas ruas, aos milhares, em todo o Brasil. Estes são os mais atingidos pela pandemia do novo coronavírus e, lamentavelmente, não vislumbram medida efetiva que os levem a ter esperança de superar as crises sanitária e econômica que lhes são impostas de forma cruel. O Presidente da República, há poucos dias, no Plano Emergencial para Enfrentamento à COVID-19, aprovado no legislativo federal, sob o argumento de não haver previsão orçamentária, dentre outros pontos, vetou o acesso a água potável, material de higiene, oferta de leitos hospitalares e de terapia intensiva, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea, nos territórios indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (Cf. Presidência da CNBB, Carta Aberta ao Congresso Nacional, 13/07/2020).