“Quem sou eu?”, nas máscaras nossas de cada dia
O humano é um atormentado por dúvidas (há, também, quem diga que também é atormentado por dívidas, mas isso não vem bem ao caso nesse texto, e nesse momento…). Das dúvidas mais simples às mais complexas: “Posso acordar mais tarde?” “Com que roupa eu vou? (Eu devo mesmo ir?)” Esse ou aquele time? Mas antes dessas, outras (tantas) foram (igualmente) importantes, talvez mesmo até maiores: “Quem sou eu?” “De onde venho?” “Para onde irei?” Cada questionamento tem sua “pré-ocupação”. Algo que lhe é caro, uma nuance que é própria à dúvida. É bem dizer, cada “um” quer “sua resposta”: não “uma” resposta, mas “sua” resposta. Então, fica claro que o “problema” não se resume à pergunta, nem se esgota na resposta. O problema está no “quem” (como) duvida. Ou seja, estamos frente ao “EU”, o mais antigo e turbulento centro do Universo, o mais revolto dos mares.
O humano, “sendo” (existindo), transita entre a sua autoimagem (o que crê ser) e o resultado de sua “manifestação” (o que os outros lhe dizem ser). Essa “manifestação” nada mais é que a exteriorização do “querer consciente”; é o “vir-a-ser” com efetividade; é o momento que a “ideia” se torna “fato”. É a gênese suplantando a mudança. Mas o humano, ao anunciar-se, manifestar-se, o faz invariavelmente fragmentado, incompleto. Indagado, às vezes até mesmo “confrontado”, diz seu nome, mas na esmagadora maioria das vezes não lhe sabe o significado, ou o porquê daquela escolha; diz sua filiação, ou parentesco; diz sua origem (cidade ou região natal); diz sua profissão; diz quem deseja ser; diz sua posição política; ou, ainda, diz o que um dia foi (“ex” alguma coisa). Ante tal, permito-me evocar trecho de uma preciosidade da literatura, escrita por BRANDT HORTA, “Sê brasileiro”: “Se perguntarem, filho, onde/ É a terra do teu amor,/ Cheio de orgulho, responde:/ Sou brasileiro, senhor./ Não digas — Sou sergipano,/ Sou paulista ou sou mineiro,/ Pois serás mais soberano,/ Dizendo: — Sou brasileiro!”
Sempre é difícil a resposta ao “Quem sou”, pois nos perdemos em um sem número de parcialidades, de “particularidades”. Em quantos “pedaços” podemos “quebrar” um “pré-conceito”? De quantas maneiras se podem ver a mesma coisa/pessoa? Imagine-se o “eu fragmentado”. Os antigos hebreus viam o humano como resultado –expressão aqui entendida como “consequência” do quanto é intrínseco a um “processo” de “vir-a-ser”– da “ruach” (o espírito), da “nephesh” (a alma), da “basar” (o corpo físico), e do “lebab” (o coração). Os antigos hindus, por sua vez, viam o humano como resultado dos “chackras”, dos mais básicos aos mais elevados. Somos um perfeito campo de batalha do ânimo de sobrevivência, dos desejos e apetites, de nossa autoimagem, de nossa emoção, de nossa comunicação (“manifestação”), de nossa interiorização (meditação, intuição), e de nossa espiritualidade. Desde o alvorecer da filosofia grega, fomos premiados com preciosos caminhos de (auto)conhecimento. O heraclitiano “nunca entramos no mesmo rio duas vezes, pois tanto o rio como nós somos diferentes”; o socrático “conhece-te a ti mesmo”; o platônico “mundo das ideias”, onde a aparência das coisas é falsa e o verdadeiro conhecimento devia ser buscado pelo uso exclusivo da razão; o aristotélico contraponto, afirmando que a razão não pode prescindir dos sentidos, pois são o primeiro “contato” com o mundo. Inauguraram, pois a “praça de guerra” entre o “em-si” e o que deste se percebe (“manifestação”). Mais moderno, o pensamento do “Leviatã” de Hobbes, situando duas espécies de conhecimento: o conhecimento do fato, como sensação e memória, o que é próprio à testemunha do mesmo; e o conhecimento condicional, advindo do raciocínio e da interpretação. Do encontro [nem sempre pacífico] deriva a história como registro de tais. Ainda, a fenomenologia na obras de Kant, Husserl, e Hegel, onde –em um arroubo atrevido, sintetizo– o “em-si” se manifesta, e à compreensão do humano a História é escrita (e, bem sabemos, a história é contada por quem ganha a guerra…). Ainda, como uma flecha cruza o ar buscando seu alvo, o humano se impulsiona e se manifesta em direção ao “em-si”.
O humano está sendo uma “máquina contida” (“poderes cósmicos e fenomenais dentro de uma lampadazinha”, como bem disse o gênio em “Aladdin”); há raiva, que de um lado ajuda a defender manter e reforçar seus limites pessoais, profissionais e sociais. Mas a raiva sem controle inflama-se em ira. Também há medo, que aguça a atenção e ajuda a evitar situações perigosas. Mas o medo sem controle, implode em pânico. Também há ambição, um motivador de conquistas. Mas a ambição sem controle, isola e amarga em ganância. E, sim, também há dúvida, que é fundamental para tomarmos decisões, nos obriga a pensar nos prós, contras e consequências das escolhas que fazem parte da vida. Mas, sem controle, imobiliza em insegurança.
Disso tudo é possível concluir, como Legião Urbana em “Índios”, o futuro não é mais como era antigamente. Não somos os mesmos de instantes atrás. Somos diuturnamente bombardeados por informações e sensações, que –quase na mesma velocidade– “filtramos e apreendemos” (“sentimos”), incorporando a nós mesmos em nosso dia-a-dia, ao nosso “sendo humano”, sim, porque somos –ao menos deveríamos ser– capazes de apreender, de mudar, de evoluir (até os pokémons evoluem, não é?). A cada manifestação (e seu respectivo reflexo sobre nós), uma nova comida ou bebida elegemos “a melhor que experimentamos”; um novo fato que nos provoca empatia, ou horror, ou indignação. Vivemos a “transitar” no microcosmo do noticiário: todo dia é uma “bomba nova”, “cada mergulho é um ‘flash’”, que tem o efeito de nos fazer esquecer (ou arrefecer) os efeitos da “bomba” anterior. Tentamos apressar com que ferimentos se tornem cicatrizes, e nos especializamos em mostrar apenas as que nos convém.
Em uma linha bem à margem das entrecruzadas histórias dos humanos, há uma corrente “explicativa-negacionista”: “eu sou” o que “não-sou”, algo que está bem longe de estabelecer qualquer tipo de definição ou convencimento. É a tentação de “definir”, por exemplo, que televisão é um “não-pneu”. Ou “isso” certamente é um “não-aquilo”, como se isso bastasse. É o “aggiornamento” do “não-pode-porque-não-pode-e-pronto”, ou “é-isso-desse-jeito-e-acabou-a-discussão”. Pensar-se, definir-se, não nos deve levar ao perigoso vôo de Ícaro, onde perguntas seriam “satisfeitas” por outras tantas perguntas retoricamente encadeadas, condenadas a uma “não-resposta”, como o trabalho de Sísifo, também na mitologia grega. É perguntar-se sobre si, sobre sua manifestação, não sobre a “ideia” desta (o que penso ser, ou o que eu gostaria que fosse). Às vezes obriga a certo “distanciamento” de si mesmo, como para permitir ver o que se esconde sob o próprio nariz. Na insone busca do “quem sou”, tropeçamos com muito mais facilidade no “não-eu”.
Socorrendo-me no “Humano, demasiadamente humano” de Nietzsche, vemos que “há milênios, olhamos o mundo com pretensões morais, estéticas, religiosas, com uma cega inclinação, paixão ou temor, e porque nós temos realmente refestelado nos vícios do pensamento ilógico, que esse mundo se tornou pouco a pouco tão admiravelmente diverso, terrível profundamente significativo, repleto de alma; ganhou cores –mas formos nós os coloristas; o intelecto humano, por causa dos apetites humanos, dos afetos humanos, fez aparecer esse ‘fenômeno’ e transferiu nas coisas suas concepções fundamentais errôneas”. Ainda, questiona: “como algo pode surgir de seu contrário?” Bem assim dizer, como pretender definir o “eu” no “não-eu”? O “não-eu” é a minha negação? Ou a chance de apreender “quem/o que sou” com o “feedback” de minha manifestação? Assim, o “não-eu” não pode –não deveria– ser uma ameaça. Na evolução darwiniana, a espécie mais capaz suplanta (e exclui) a menos capaz. O hoje “oprimido” não deveria ocupar-se da “inversão vingadora”, onde se tornaria o opressor de seu opressor. Gatos e ratos sempre existiram –retoricamente falando; não me refiro aos dentes-de-sabre e os grades roedores–, e um nunca excluiu o outro, mas um historicamente aprendeu com o outro. Há que se conviver e coexistir. O “eu” deve aproximar-se do “não-eu” –não para mútua anulação–, em anárquica subversão do sistema que os divide, dispondo-se sinceramente a conviver e apreender, encurtar distâncias em busca da origem do que divide. Nascemos não só biologicamente falando, mas culturalmente; e isso nos incutirá não só amores e afeições, mas desconfianças, preconceitos, “certezas”, verdadeiros “ismos” (assim entendido todo tipo de divisão, qualquer seja o “motivo”), e principalmente o medo do diferente, do “não-eu”. O “eu” manifesta-se ao “não-eu” em um mundo que abriga uma totalidade instrumental e de “entes” (humanos “sendo”). O mundo, assim, é o “limite” dentro do qual todo “ente” encontra seu sentido, seu objetivo. E o mais intricado, talvez, sendo humano, é buscar (encontrar) seu sentido no mundo, e este somente tem sentido apenas no “vir-a-ser” humano. Desde que proposto no séc. XVIII, muitos se questionam (com algumas adaptações): “caindo uma árvore em um bosque deserto, qual lhe seria o som?” E acrescentar-se-ia: e algum humano que presenciasse tal manifestação, seria impactado igualmente em relação a outro?
Volto-me a Hobbes, quando afirma que “a Natureza criou os homens tão iguais na faculdades do corpo e do espírito que, se um homem, às vezes, é visivelmente mais forte de corpo ou mais sagaz do que outro, quando considerados em conjunto a diferença entre um homem e outro não é tão relevante que possa fazer um deles reclamar para si um benefício qualquer a que o outro não possa aspirar tanto quanto ele.” Decerto que o mais forte fisicamente pode “eliminar” o mais fraco, mas o mais sagaz poderá “eliminar” o apenas mais forte mediante “maquinações”. E esse, mais sagaz, “duvida” ser suplantado pela sagacidade de outrem, pela “insatisfação” própria ao humano. Não duvidamos de nossa finitude, de nossas limitações; mas nos pomos em guerras para demonstrar que as dos outros são invariavelmente menores que as nossas. O agressor nada mais é que alguém que teme ser agredido (novamente), qualquer seja a forma. Mas diuturnamente duvidamos do “não-eu” refletido no espelho, e nos fartamos de “reinventar” no que vemos.
Relembrando a “Fenomenologia…” de Hegel, imagine que o “objetivo” da existência –daquilo/daqueles que “estão sendo”– é “frutificar”, “dar resultado”. “Frutificar para si próprio” é um contrassenso. O “poder-ser” é o limite de quem (de fato) “quer e realiza”. Realizar é pôr-se um degrau acima, dispondo-se a recomeçar todo o ciclo. Aí cabe uma pergunta: que “fruto” (resultado) –visível– esperar? O pessegueiro do mestre Oogway não dará maçãs porque o mestre Shifu assim deseja (Ah, sim, “Kung Fu Panda” tem mais informação que percebemos…). Aliás, as frases dele naquela animação são preciosas: “Não posso obrigar uma árvore a florir quando quero, ou a dar frutos quando me convém (…) Se você plantar um pessegueiro terá pêssegos, você pode querer uma maçã ou uma laranja, mas mesmo assim terá pêssegos”. Assim, como a belíssima roseira Scarlet Carson (do Filme “V de vingança”), não dará maçãs (ou pêssegos). Nem tampouco o capim braquiária nos dará rosas (ou pêssegos). Mas ainda assim, cada um desses terá alcançado seu “objetivo”: “frutificar”, cada um do seu jeito. Não nos “esgotamos” no resultado, mas no caminho “apreendente” até ele, no vôo da flecha até o alvo. O resultado é “útil”, mas se o considerarmos com o seu “vir-a-ser”, o momento que compreendemos que não somos (mais) que fomos, porque apreendemos em nossas manifestações. É, talvez, a intenção da música “The climb”, da Miley Cirus (está bem, eu sei que há quem não goste, mas eu junto trecho traduzido…): “Sempre vai haver outra montanha/ Eu sempre vou querer movê-la/ Sempre será uma batalha difícil/ Às vezes eu vou ter que perder/ O importante não é o quão rápido eu vou chegar lá/ O importante não é o que está esperando do outro lado/ Mas sim a escalada”.
Assim, não é demais dizer que o “ser humano”, na verdade está “sendo humano”, posto que não é estático, concluído; mas é situacional, movente, cíclico, naturalmente insatisfeito. Desde o conceito filosófico-judaico “EGO EIMI” (“EU SOU”), passando pelo antropocentrismo medieval, até a cíclica antítese socrática “só sei que nada sei”, nota-se um movimento “buzzlightyeariano” (Ah, eu também assisti “Toy story”…): “ao infinito e além!” O humano é questionador –ao menos deveria ser– dos fatos que o cerca, posto que na maioria das vezes, não tem em seu alforje tanto quanto seja necessário a ter opinião, com lastro. Daí, não pouco extraordinário ter opinião sem ter certeza, permitindo-se –involuntária ou conscientemente– transitar do “eu acho”, ao “estou vendendo o peixe como eu comprei”, ao “quem conta um conto, aumenta um ponto”, chegando à novíssima “fake news”. Bem a propósito, “as máscaras nossas de cada dia”. Na busca de (“sua”) resposta ao “quem/o que sou”, permitimo-nos usar “máscaras”, “fantasiando” ser algo (ou alguém), tão ancho e seguro de si, e totalmente “influencer”, “ser” quem acha (“tem certeza”) ser, tantas vezes escondidos no anonimato, em um pseudônimo, ou um perfil falso de rede social. Bem aí que o que já não parece simples, faz-se mais complicado. As máscaras nos obrigam deixar de lado a busca do “eu” (verdadeiro), fazendo atrativo ser “um tipo mediano”, “um carinha mais-ou-menos”, entregando-nos assim às hábeis mãos de um “manobrista”, abdicando de “ser único”, aceitando passivamente a condição de “mais um na multidão”.
Somos insatisfeitos, sim, como já disse. Queremos mais, queremos o melhor, mesmo que não tenhamos clareza sobre o que de fato isso seja. Somos diuturnamente tragados em sonho a novos mundos, onde “certamente” seremos (mais) felizes. Nem sempre é o destino, mas o êxtase “de-ir-lá”. Será que os grandes navegadores, descobridores do Novo Mundo, sabiam realmente para onde iam, ou o que estava à sua espera? Meses de confinamento e privações em precárias embarcações, atormentados pelo medo medieval de “cair na beirada da Terra” (até então, reconhecidamente plana), foram satisfeitos ao aportar à América? Às Índias? Voltando à “Fenomenologia…” hegeliana, sabemos que o espírito se mostra tão pobre que parece aspirar para seu reconforto a um mísero sentimento “divino” –uma fagulha transformadora. A “grandeza” do “novo” com que se sonha satisfazer, valerá a “insignificância” do que foi deixado para trás. Pergunte a um alpinista, sobre a sensação experimentada ao chegar ao topo, mesmo à custa de dias de planejamento, horas de escalada, e de “ferimentos de conquista”.
Disputamos diuturnamente “poder”; “conhecimento” é poder; queremos ser “conhecidos” pelo que somos (“temos”), e a falta disso nos desencadeia um mecanismo de “disputa”: a competição busca derruir a desconfiança, e esta deve ser dissipada pela glória da vitória (“viu? Eu estava certo!”). E o pior: quando mais disposto aos fins (“glória”) menos importarão os meios. Quanto mais débeis forem os controles sobre a competição, maiores os efeitos (nem sempre edificadores) da guerra pelos fins. O mau tempo não se define (ou se esgota) por um mero chuvisco ou um brisa; estar em guerra é o estar disposto a ela, custe o que custar, para alcançar o “MEU” prêmio. É a metáfora do índio retratado no “Guarani” de José de Alencar, como impaciente enérgico e resoluto,que repele o caçador branco, apontado à caça acuada, bradando e batendo no peito:“é meu, meu só!”. Estar em constante guerra faz do humano um solitário, bruto, pobre. Há solidariedade na derrota, mas a vitória é egoística. O que importa na guerra é vencer, à custa do vencido. Pois na melhor das hipóteses, quer uma vida longa e em paz, para prosperar e prolificar; obstar seu sonho é obstar sua vida. Daí: até onde o humano está disposto a “ir” (“fazer”), para continuar “sendo”? Talvez a resposta esteja do velho adágio latino: “si vis pacem para bellum” (se queres a paz, prepara-te para a guerra”).
Mesmo correndo o risco de ofertar conceitos ou respostas, voltamo-nos, à questão –“quem sou eu?”–, sou capaz de definir, de me posicionar, tomar nas próprias mãos o volante de minha vida? Ou celebramos o ócio e a acomodação, permitindo-me o “dolce far niente, sem culpa nenhuma” (Ah, Rita Lee…), abrindo mão do protagonismo da própria vida e história, para ser um discreto coadjuvante de algo (ou alguém). O conceito clássico de Rousseau –“o homem é naturalmente bom, mas a sociedade o corrompe”– abarcaria a generalidade (perigosa), pressupondo a tendência do humano em ser massa anônima, ao invés de ser a ponta da adaga.
Bem a propósito desse pensador, in “A origem da desigualdade dos homens”, lemos que “a extrema desigualdade na maneira de viver, excesso de ócio para uns, excesso de trabalho para outros, a facilidade de atiçar e de satisfazer nossos apetites e nossa sensualidade, os alimentos demasiado rebuscados dos ricos, que os nutrem com sucos caloríferos e os cumulam de indigestões, a má alimentação dos pobres, que muitas vezes até lhes falta, o que os leva a sobrecarregar avidamente seu estômago quando comem, as noitadas, os excessos de toda sorte, os arrebatamentos imoderados de todas as paixões, os cansaços e o esgotamento do espírito, os desgostos e pesares incontáveis que sentimos em todos os estados e que corroem perpetuamente as almas — eis as funestas provas de que a maioria dos nossos males são obra nossa e que nós evitaríamos quase todos eles se conservássemos a maneira de viver simples.” Um texto do séc. XVIII, que nos parece tão recente. O humano, naturalmente simples, ofuscado e deslumbrado pelo “extra-si”, “quer-ser” o que não compreende, um querer pueril que pode dominá-lo em um só instante, como “possessão” que não se lhe permitir exorcizar.
Na mesma linha, no “Manifesto…” de Marx e Engels, podemos ver que “homem livre, patrício e plebeu, barão e servo, mestre e companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma batalha ininterrupta, ora aberta, ora dissimulada, uma luta que terminava sempre com a uma transformação revolucionária de toda sociedade ou com a destruição das duas classes em luta.” O que é isso senão o angustiante sentir-se sem respostas ante ao “por que ele tem (é) e eu não?” “Por que tudo não é de todos (ou só meu)?” Mal comparando, a frase do rei de França, Francisco I, questionando o tratado de Tordesilhas: “gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me exclui da partilha do mundo”. O “ter” é excludente: estabelece a linha que divide do “não-ter”, mesmo que o que lhe sobra falte a alguém. Daí a “tentação” “padecida” pelo oprimido, quando subvertida a “ordem”, e “revista a sociedade”, considerar “justo e lícito” passara “oprimir” seu algoz. A linha que divide justiça e vingança, cada vez é mais tênue.
O humano está sendo uma finitude, uma incompletude, uma insatisfação; um impulso incontido que o move (ou deveria mover) pra outro lugar; “marcar passo”, aparentando/acreditando se mover, quando é o mundo que gira ao seu redor (nesse caso, descartamos aqueles que tem labirintite…); ou “romper adiante”, um “ir-para-onde-não-sei”, lançar-se como descobridor de novos mundos. Mas a finitude é um “não ultrapasse”. A incompletude é um saber que muito mais há a saber. A insatisfação é o “não contentar-se de contente” (Ah, Camões e Legião Urbana…)
“Quem sou eu?”, eu “estou sendo”, aquele que se manifesta,
“aprendendo e ensinando uma nova lição” a cada dia, vestindo e desvestindo as máscaras
nossas de cada dia, juntado os cacos de minhas parcialidades na construção de
um mosaico único. “De onde vim?”, de um determinado momento desejado
quisto, para o qual se ajuntaram sucessiva e ciclicamente pessoas
fatos e sensações, resultando um “caldo nutritivo” que me obriga diuturnamente
à minha manifestação. “Para onde vou?”, isso importa “querer ir”, não se
contentar com o degrau alcançado, não edificar obstáculo intransponível à custa
da finitude, da incompletude, mas ter a insatisfação por companheira de
jornada. Guimarães Rosa, em “Grande Sertão: Veredas” imortalizou: “O correr da vida embrulha tudo, a vida é
assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O
que ela quer da gente é coragem. (…) Tudo o que já foi, é o começo do que vai
vir, toda a hora a gente está num cômpito [encruzilhada].”
Só me resta pedir, paciente leitor: sendo humano, escolha
bem suas escolhas. Seus projetos, suas decisões,
suas guerras, suas “máscaras”, pois todas elas tem consequências. E,
lembrando um precioso resumo: “não faça
aos outros …o que não queres que
te façam”.